No Rancho Fundo: qual o Nordeste mostrado nas telas da TV Brasileira?

No Rancho Fundo: qual o Nordeste mostrado nas telas da TV Brasileira?

Na última quinta-feira (29), foi divulgado o primeiro registro de ‘No Rancho Fundo’ a nova novela das seis da TV Globo. Na imagem (em destaque nesta publicação), é possível ver parte do elenco do novo folhetim da Globo, e consequentemente a caracterização dos atores e atrizes que darão vida a personagens nordestinos.

É que a trama de “No Rancho Fundo”, se passa no “sertão” do Brasil. Criada e escrita por Mario Teixeira com direção artística de Allan Fiterman, é descrita como uma comédia romântica contemporânea. Fato é que a caracterização nos levanta uma discussão que segue há anos: qual o Nordeste mostrado nas telas da TV Brasileira?

Considerando que a TV Globo é a maior emissora do país, e a que mais produz conteúdo inédito do Brasil e sobre os brasileiros, levanta-se a questão sobre o estereótipo do Nordestino em suas novelas. Afinal, a televisão, e as novelas brasileiras são um dos, se não o principal meio de “concretização/retratação do real”, ou seja, no sentido de produzir o que autores como Pierre Bourdieu denominam “efeito do real”. Que nada mais é do que fazer com as pessoas acreditem que o que vêem retratado seja em novelas, filmes ou séries, é realidade nua e crua. Nesse sentido, o que vem a ser então a “realidade” do nordeste e do nordestino incessantemente tipificadas pelas novelas?

A narrativa televisiva sobre o Nordeste e o nordestino

Elenco de ‘No Rancho Fundo’, a nova novela das seis da TV Globo. Foto: Globo/João Cotta

Seres rústicos, brutos, desprovidos de estudo, sujos, desinformados, jocoso, áspero e por vezes, viventes na miséria. Não passamos disso segundo a narrativa que se produz para a TV. Além disso, essa narrativa corrobora e legítima ideias do senso comum. Dessa forma criam-se não apenas representações falsas, mais fantasias, seja sobre os nossos sotaques, pois sim o Nordeste é plural e os sotaques variam, inclusive, da capital pro interior. Além disso, seja numa trama de 1993 ou de 2024, algo é notório, são novos personagens e velhos estereótipos. Vamos aos fatos?

Em ‘Renascer’, atual novela das nove em exibição pela TV Globo. O protagonista José Inocêncio vivido por Humberto Carrão e Marcos Palmeira. Ainda na primeira fase da trama manda seus filhos, com exceção de João Pedro, para estudarem na capital. Na segunda fase, o contraste entre o interior baiano, onde há a fazenda de cacau dos Inocêncio, e a capital, onde está a vida “urbana” é mostrado entre a Bahia e o Rio de Janeiro.

Quando querem representar uma vida “normal”, “urbana”, os autores de novela optam por ambientar seus núcleos nas capitais paulista e carioca.

 

Fora do eixo Rio-São Paulo, a retratação é outra

Podemos falar das incontáveis obras sucessivas que se passaram, quase que num círculo infindável no eixo Rio – São Paulo. Nestas os estereótipos são quase que inexistes, principalmente no que se refere a população desse local. Ademais, quando trata-se do Nordeste, a narrativa gira em torno da zona rural.  E pasmem, na retratação do coronelismo ou  situando as “fictícias cidades”, como províncias atrasadas.

José Inocêncio (Marcos Palmeira) e João Pedro (Juan Paiva) em ‘Renascer’. Foto: Globo/Fábio Rocha

Ainda falando em ‘Renascer’. A obra original de 1993, passou por pouquíssimas alterações na “readaptação” de Bruno Luperi, neto de Benedito Rui Barbosa (autor da 1ª versão). Para ele, o processo de adaptar um clássico da teledramaturgia brasileira, não perpassa por recriar a história, mas sim trazê-la para os dias de hoje. E nisso tenho de concordar. Os filhos de Inocêncio, ou qualquer outro personagem vindo da capital, seguem sendo vistos como providos de muita inteligência, estudo, elegância, porte, refinamento. Enquanto personagens como João Pedro, são desprovidos de tudo que foi enumerado anteriormente, ou seja, como se uma pessoa interiorana não os tivesse.

Além disso, a ausência de qualquer avanço tecnológico, como uso de redes sociais, internet, telefone, evidenciam a repetida retratação do Nordeste e do nordestino na televisão.

É como se esses indivíduos e suas comunidades não fossem afetados nem “contaminados” pelas influências dos mercados globais.

 

Novos personagens, velhos estereótipos
Beto Falcão (Emilio Dantas) em ‘Segundo Sol’. Foto: Globo/João Cotta

Além disso, obras como “A Indomada” (1997), “Porto dos Milagres” (2001) traziam histórias ambientadas em cidades fictícias nas regiões de Ceará e da Bahia. Dessa forma, ambas “cidades”, foram retratadas como províncias atrasadas, onde imperava o coronelismo.

Você, ainda pode estar se perguntando. Mas e, ‘Segundo Sol’ (2018), ‘Tieta’ (1989), ‘Gabriela’ (1975/2012) elas não traziam o nordeste com um outra olhar? Uma outra narrativa?. Primeiramente, ao retratar um lugar eu preciso reconhecer o povo que ali reside. Eu preciso compreender a história que o forma, que o conduz, que o impacta e que o fortifica. É preciso ser leal a essa história, mesmo dentro da licença poética que uma obra de ficção goza.

Quando falamos de ‘Segundo Sol’, novela das nove da TV Globo, exibida em 2018. O povo baiano não se viu representado nas telas. É só fazer as contas: a Bahia é o estado com população mais negra do Brasil e Parda é a cor ou raça predominante em Salvador. Em ‘Segundo Sol’, mais de 60% dos atores eram brancos.

A TV, assim como o audiovisual de forma geral, tem o seu papel no empoderamento dos sujeitos. O espelho no qual o sujeito se vê é o outro, mas como posso me enxergar naquilo que não me representa?

 

Se formos para a década de 90, o mesmo aconteceu na novela “A Indomada”. Uma pesquisa feita no Ceará pelo Ipesp (Instituto de Pesquisa Econômica, Social e Política), apontou que 87% dos moradores dessa região achavam ridículo ou encaravam como piada a representação do cearense feita pela obra de Aguinaldo Silva e Ricardo Linhares.

O descompromisso com a verossimilhança
Timbó (Enrique Diaz) em ‘Mar do Sertão’. Foto: Globo/Ronald Santos Cruz

Além disso, é notório que algumas produções televisivas, apesar de terem como base romances de autores originários do Nordeste, como exemplificado nas novelas “Gabriela” e “Tieta”, adaptações das obras de Jorge Amado.

Contudo, é perceptível que há a presença de exageros na linguagem, no vestuário e na interpretação, conferindo a essas narrativas um tom caricato que se afasta da autenticidade. Adicionalmente, tais representações frequentemente retratam uma visão distorcida da realidade, seja pela falta de avanços tecnológicos, especialmente no sertão.

Victor Oliveira: É baiano, jornalista e agente cultural pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-rio-grandense (IFSul). Bacharel em Psicologia pela Universidade Católica do Salvador (UCSAL) e aficionado por comunicação. Escreve sobre cultura e o mundo televisivo desde 2017. Possui MBA em Marketing e pós-graduação em Neuromarketing. victor.olv@bastidorestv.com

Ver comentários (23)